Conviver em paz e constrututivamente com as diferenças entre os indivíduos e os grupos é o maior sinal de saúde psíquica, sucesso político, desenvolvimento social e amadurecimento cultural e moral. Mas não é fácil. Mesmo os que acreditam no valor das diferenças, mesmo os que crêem na necessidade de respeitá-las nem sempre conseguem experimentar, na prática da vida cotidiana, o que postulam, em teoria.
Por que é tão importante? E por que, tão difícil?
I. Sobre a importância da diferença
Importante porque sem diferença não há o Outro, só há o sujeito, e este, isolado, apartado de qualquer relação humana, sequer chega a ser um sujeito no sentido pleno da palavra, não chega a ser uma pessoa. Sozinho, o ser humano não seria capaz de pensar, elaborar as emoções e dar sentido ao mundo e a si mesmo. Isso tudo por um motivo: sem o Outro, a linguagem seria impossível. Afinal, ela é herdada, envolve comunicação e supõe o compartilhamento de significados, o que implica um consenso mínimo sobre aquilo que se entende e percebe como sendo “a realidade.
Veja que interessante: para que uma pessoa exista em sua plenitude, exercendo suas faculdades intelectuais e emocionais, é preciso uma linguagem, um Outro e uma realidade compartilhada, isto é, uma realidade que faça sentido para ambos. Conclusão: ou regressamos à nossa natureza estritamente animal ou teremos de aceitar viver em um triângulo, do qual seremos apenas um vértice. Os outros dois vértices serão ocupados, respectivamente, por outro sujeito (diferente de nós, portanto) e pela linguagem. Ocorre que essa linguagem a que me refiro não se esgota em uma língua. Ela traz consigo valores, crenças, tradições e um universo de significacões sob a forma de relatos míticos, saberes, enunciados expressivos padronizados, codificações das emoções e narrativas que dão sentido à realidade comum. Ou seja, a linguagem traz consigo uma cultura, uma história e, consequentemente, uma sociedade. Aí está, enfim, nossa equação completa, sob a forma triangular: o sujeito -- o Outro -- a sociedade.
A diferença entre o sujeito e o Outro é mediada (isto é, intermediada e temperada ou calibrada) pelo terceiro vértice: a sociedade ou a linguagem. Quer dizer: ambos os sujeitos, ainda que diferentes por definição, pertencem à mesma sociedade e são interlocutores, capazes de trocar mensagens e negociar significações. Tudo se complica caso pertençam a sociedades distintas, dotadas de línguas, valores e culturas diversas. Mesmo assim, entretanto, enquanto participantes da comunidade humana, dotados da faculdade linguística (aptos a produzir e captar sentido), continuam sendo capazes de negociar significados e se comunicar, inventando meios originais de adaptar suas linguagens às possibilidades de entendimento comum, via recursos expressivos criativos, usando o corpo, os gestos, a mímica, os objetos disponíveis e os sons.
Até aí, tudo parece fluir muito bem. O ser humano não é nem pode ser uma ilha. Precisa do Outro e, para interagir com o Outro, precisa dos outros, isto é, de uma sociedade e uma cultura. Antes de representar um problema, a diferença é a solução. O bloco do eu sozinho é uma fantasia irrealizável e essencialmente autodestrutiva, uma vez que esse eu solitário não poderia ser um eu: isolado, não teria uma linguagem na qual se expressasse e se constituísse --se concebesse e se experimentasse-- como “eu”. Viva a alteridade, ou seja, a existência do Outro. Viva a diferença que faz de você quem você é, na exata medida em que faz do Outro aquilo que ele ou ela é.
A relação é que nos dá à luz como sujeitos. Ela é mãe, matriz, ninho, nicho, ambiente, origem e natureza. E nela (na relação) há, repito, três componentes: eu, Outro, a sociedade (ou a cultura, ou a linguagem). A diferença nos constitui. Somos a diferença com o Outro, ante os outros (a comunidade a que pertencemos).
Seria melhor esclarecer o papel do terceiro termo, os outros, a sociedade ou a linguagem (que só existe porque há uma sociedade, a qual também deve sua existência à linguagem). Por que, sem a linguagem, eu e o Outro não somos nem eu nem o Outro, nem iguais nem diferentes? O que são a igualdade e a diferença?
II. Sobre o sentido da diferença
Uma porta e uma pera são diferentes, concorda? Claro, você come a pera e passa pela porta. No entanto, alguém poderia fazer o papel do advogado do diabo e dizer que ambas são palavras e, portanto, não são diferentes. O que as difere são seus significados.
A noite e a manhã são diferentes, mas são ambas períodos do ciclo de vinte e quatro horas que chamamos dia e, nesse sentido, são iguais.
Amigo e inimigo são antônimos, isto é, têm sentidos opostos, mas ambos são modalidades de relacionamento e, nessa medida, são o mesmo.
Assim como o samba e o tango, a rumba e o jazz, o frevo e a valsa, o mambo e a salsa. Enquanto ritmos, são diferentes. Todavia, por serem ritmos, são iguais.
Frio e calor são distintos e opostos, mas são ambos sensações térmicas provocadas por variações da temperatura.
O som alto e baixo, grave ou agudo, são diferentes mas são sempre som.
As cores, todas elas são diferentes entre si, mas também são iguais, porque, afinal, são sempre cores.
O que quero dizer é que não há diferença sem semelhança, desigualdade sem igualdade, distinção sem analogia, uma vez que a diferença é uma comparação, um contraste, uma relação, e uma relação envolve três elementos: os objetos a serem comparados e um critério ou uma medida (o sistema métrico, uma escala cromática ou sonora, um termômetro, um código que ordena valores). E a linguagem de uma sociedade (sua cultura) é o depósito dos critérios e das medidas.
Em síntese, não há sujeito sem Outro, nem há relação entre ambos (a diferença é uma relação) sem uma referência comum que os identifique e reconheça sua diferença, enquanto seres humanos individuais ou enquanto membros de grupos sociais, com nomes e sobrenomes, idades e outras características.
Essas características só ganham o estatuto da dessemelhança porque, ao mesmo tempo, são assinaladas a partir de um critério comparativo (digamos, frio ou quente), cujo funcionamento depende, como vimos, do estabelecimento de condições semelhantes, isto é, condições que ambos os objetos a serem comparados possuem (a referência comum a partir da qual se assinalará a diferença será uma condição comum a ambos os objetos comparados: nesse caso, a temperatura).
Figurativamente, temos três vértices de um triângulo: o objeto A, o objeto B e um termômetro, manejado por um observador, que conhece a técnica da leitura de termômetros e que pertence à sociedade em cuja cultura o saber e a tecnologia pertinentes (sobre temperaturas e medições) foram desenvolvidos.
Em uma frase: a diferença é a sombra da semelhança, só existe a seu lado e sob a luz de um observador.
Por outro lado, o mesmo vale para a semelhança ou a identidade. Elas não reinam absolutas. Só existem no contraste com as diferenças. Precisam delas a seu lado para afirmarem-se como aquilo que são. E também necessitam do triângulo que descrevi.
Por isso, o sujeito necessita do Outro para ser ele mesmo ou ela mesma. E sendo ele mesmo ou ela mesma, quer dizer, sendo idêntico a si, assumindo uma identidade, o sujeito traz para dentro de si a diferença (ele não é o Outro, do qual se distingue, entretanto, por dele distinguir-se, com ele compartilha condições comuns, sem as quais a diferença e a identidade não existiriam) e o triângulo, o qual envolve, no terceiro vértice, a sociedade (ou a cultura, ou a linguagem, ou a medida, ou o critério, ou o valor).
A relação com o Outro é internalizada no processo de construção da identidade de um sujeito.
Dizendo de outro modo: a diferença é internalizada e deixa, portanto, de ser uma exterioridade da qual o sujeito possa afastar-se. Não importa se esse Outro, esse diferente é abominável, tolerável, assustador, estranho, perturbador ou assimilável, admirável e amável. Se há identidade e diferença, há, como demonstrei, entre o sujeito e o Outro uma natureza comum, uma condição comum, uma semelhança de fundo sobre a qual se ergue a diferença. Reconhecer essa comunhão com o Outro, essa semelhança de natureza e condição, por maior que seja a diferença, já é suficiente para nos inquietar. Por isso é tão lindo e tão forte –e tão verdadeiro-- admitir que tudo o que é humano nos diz respeito. Por mais repulsivo que o Outro nos pareça.
Essa é a razão primeira e mais dura para a dificuldade de conviver com o Outro, com os outros e suas diferenças: elas nos assustam porque também estão dentro de nós e correspondem a lados obscuros e amedrontadores nossos, que preferimos ignorar e reprimir.
III. Por que é tão difícil conviver com diferenças?
Consideremos um exemplo: o ódio que sentimos por alguém que tenha cometido um crime violento, mesmo que a vítima não seja conhecida, às vezes alcança um patamar elevadíssimo, a ponto de induzir violentos atos de vingança. Há muitas razões que explicam esse sentimento e a reação de outras pessoas ao nosso lado pode servir de combustível.
Todavia, quando se supera o momento e a explosão emocional esfria, sem que se altere a disposicão íntima de infligir ao agressor a violência que ele cometeu, mesmo que por intermédio de ações policiais ou pela via indireta da defesa de mudanças no código penal, talvez haja algo enigmático, que mereça esclarecimento.
Minha hipótese é a seguinte: em casos desse tipo, é provável que a fúria permaneça viva porque algo insuportável permanece vivo: a identificação com o criminoso; a descoberta dentro de si de um lado, uma dimensão, uma possibilidade sua de ser tão violenta quanto o criminoso e seu ato bárbaro. Daí o desespero por punir com tamanha brutalidade, apagando o criminoso do mapa da existência, destruindo até a última de suas cinzas. Seria um modo de exorcizar o mal entrevisto dentro de si mesmo. O mal que se deseja incinerar tão ardentemente precisa ser destruído, no mundo objetivo, para ser simbolicamente exorcizado do mundo subjetivo.
Não quero dizer que todos os que investem emoções intensas na punição severa de um criminoso sejam, no fundo, criminosos em potencial. O que sustento é que várias dessas pessoas sentem-se culpadas por crimes inconscientemente cometidos, desejados, fantasiados, e temem –sem o saberem-- serem capazes de violência extrema.
Uma ilustração: o psicanalista Bruno Bettelheim relata, em um de seus livros, um caso curiosíssimo e engraçado, e rico em ensinamentos. A criança chorava e não conseguia dormir. Por isso, o pai tentou acalmá-la contando a história do Chapeuzinho Vermelho. Ele falava, a criança escutava com atenção, mas em seguida voltava a chorar, angustiada. O pai, atendendo ao pedido do filho, contava de novo a mesma história, enfatizando o happy-end para tranquilizar a criança. No entanto, o ciclo se repetia. Até que, esgotado, o pai completa a narrativa: “…e tudo acabou bem. A vozozinha sobreviveu. Chapeuzinho sobreviveu. O lobo mau morreu. Não há razão para medo. Está tudo bem. O lobo acabou. Morreu”. Ao que o filho, aos prantos, replica: “Mas o lobo sou eu; eu sou o lobo”.
Nas fantasias de destruição do irmãozinho que teria nascido para ocupar seu lugar no coração da mãe (e do pai), a criança terminara por identificar-se com o personagem negativo, na medida em que se culpava pelas próprias emoções e lhes atribuía uma espécie de poder de realização objetiva, como se sonhar com o desaparecimento do pequeno rival equivalesse a destruí-lo, materialmente.
Essa criança precisava ouvir uma história diferente; uma história que tratasse o lobo com benevolência, mostrando que ele não é mau, apenas sentiu o que todos nós sentimos e expressou isso no teatrinho da história –teatrinho que nunca ultrapassa as fronteiras da brincadeira e do fingimento. Enquanto a história terminar com a punição severa de um lobo irremediavelmente mau, a criança com ele identificada não encontrará consolo, nem espaço interno para processar a terrível culpa que carrega. Se não elaborar sua culpa e o medo de sua própria fantasia destrutiva, tenderá a crescer com essa ferida aberta. Quando algum lobo mau se manifestar no mundo real, ouvirá o uivo rouco e angustiante de seu lobo interno. Seu impulso será destruir o lobo externo para livrar-se do sofrimento provocado pela presença aterradora de um lobo mau na alma. Mesmo adulta, essa eterna-criança acreditará, sem ter disso consciência, que, se não matar o lobo externo, quando a lua cheia iluminar o bairro o lobisomem adormecido dentro de seu espírito rasgará seu corpo, destruindo, definitivamente, sua identidade e as pessoas que ela ama. Ela quer a morte do lobo mau externo para matar o mal que supõe carregar dentro de si.
Não é essa a lógica do sacrifício? As comunidades tradicionais costumavam sacrificar animais para livrarem-se do mal e merecerem a benção divina. Por isso, a operação ritual começava com a transferência simbólica dos pecados humanos para o corpo do bezerro que seria sacrificado.
O mesmo se passa quando a sociedade procura bodes expiatórios para aplacar suas culpas. Bruxas, homossexuais, prostitutas, drogados, vagabundos: quais são as categorias que encarnam o mal da sociedade e são obrigados a expiar as culpas coletivas com seu próprio sacrifício?
Eis aí um bom tema para discussão e uma maneira fascinante de pensar sobre por que é tão difícil aceitar a diversidade e conviver, em paz e respeitosamente, com as diferenças.
(Comentário extraído do site: Agenciarj.org)
Adorei essa postagem! Os fatos atuais nos levam a refletir de diversas maneiras na relaão com os demais. Gostaria, se possivel, que se falasse um pouco do atual dilema do humor. Onde humoristas são perseguidos por piadas "de mau gosto" (algumas realmente são).
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