A afetividade é o pilar da memória.
Seja a memória histórica de uma civilização, sociedade, povo, bairro ou comunidade; ela se faz no e do estar com, no apreço das pessoas e coisas de nossos entornos. Envolve um sentimento pessoal de gratidão, ou não, pelos componentes de nossas relações, constitutivas do que também chamamos "vida".
Não é, então, de se
estranhar que ao estudarmos os pilares das civilizações encontremos agrupamentos de clãs e famílias (ou, se quiserem, comunidades) patri ou matrilineares, em seus princípios formadores. Para além dos laços consanguíneos - pois não é disto que se trata aqui -, as estruturas sociais que nos conservam e possibilitam o progresso são alimentadas por laços de afeto (sentimentos) - inclusive de conflito e emoções entendidas como negativas.
O afeto por algo nos faz
querer conservar, manter vivo, ou mesmo transformar, se não destruir, o que não nos parece estar legal. Impressões emotivas, boas e más, deixam marcas mesmo que seus objetos de sentimento não se encontrem mais em nossos entornos. Razão disso, para bem ou mal, a memória. Aliada às ações, esta
pode ser construída e evocada por palavras, imagens, cheiros, objetos etc., como que condensando impressões afetivas do passado para orientar o presente e o futuro. Daí as excelentes cunhadoras de símbolos que, ao longo da história, se tornaram as humanidades. Por meio deles, elas se recordam e, assim, amando e/ou odiando seus ancestrais, amigos ou inimigos, constroem o eterno a partir do próprio efêmero de suas existências. Ilusão? Celebração da vida? Ou anseio por continuidade?
Algum sábio, provavelmente de origem grega, disse
uma vez: a palavra nos traz a presença. E que presença seria essa, pode-se perguntar, se não a do afeto evocado pelo que mantemos em relação àquilo que desejamos materializar? Aqui, você pode estar se perguntando: mas aonde você
quer chegar, com essa reflexão?
Respondo. Naquele ponto existencial em que todos nós, de alguma forma, sentimos a necessidade de retribuir os afetos, importâncias e reconhecimentos recebidos na vida - fazer circular a breve felicidade dos afetos. Apenas um movimento de comunicar certo transbordamento ocorrido a partir de um caso vivido.
Num dia desses, escutava duas pessoas falarem de amor. Me chamou a atenção o fato delas em certos momentos ironizarem e, em outros, se posicionarem ceticamente, reagindo aos
"paulocoelhismos" (será que essa expressão ainda faz sentido?) do amor. Com a noção destacada em aspas, o amor era avaliado apenas como discurso, como se ele não dependesse das práticas ou, mais do que isso, do exercício de retorno às memórias que, por sua vez, geram novas orientações frente aos afetos trazidos pelas relações.
Retorno ao amor, porque ele em muito diz respeito às bases problemáticas, constitutivas, da possibilidade do viver em conjunto (relacionamentos, amizades, famílias, comunidades) - ao modo de fazer sociedade. E, isto, se conecta ao afeto e à memória. Ser afetado e deixar-se ou não afetar, ou melhor ainda, para amar e ser amado - o que privilegio aqui - é preciso lembrar. E lembrar também consiste em trabalho: reforçar a relação pela ação intermitente de recordar.
O tempo, a linguagem e todas as categorias pinçadas antes, só se tornaram possíveis, materializáveis, por meio da memória. O momento em que os homens passaram a
conceituar a realidade só foi possível pela emergência, em conjunto, da memória das coisas que, por sua vez, favoreceu as atribuições de valores e medidas a elas. E, todo esse processo, é preciso dizer, não começou no que chamamos hoje de Ocidente. Em verdade, neste assunto talvez não importe tanto as "origens", senão aventar que, antes da memória, não existia tempo, não existia consciência, nem mesmo História. A realidade (natureza e cultura) como objeto de reflexão ou, se quiser, reflexividade, também
não era possível de ser apreendida e transformada pelo homem em objeto de
trabalho e aperfeiçoamento: reinava o acaso ou nem mesmo isso talvez.
Vou parar por aqui, a proposição é pensar e, levando em (re)consideração a velha máxima "paulocoelhística" de que "o amor
constrói" e que pode suplementar os afetos, a empatia pelas coisas e pessoas ou o tão importante reconhecimento e respeito às diferenças constitutivas. Não se trata apenas de abstração, mas de prática que auxiliada pela memória e suplementada pelo amor, pode orientar rumos outros, individuais e coletivos. Passo a bola...
Cleverson Fleming em
03/04/2014.