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sábado, 29 de outubro de 2011

Tocando na Ferida...

Minha cabeça está a mil, não consigo parar de pensar. E imagino que o motivo disso deve ser a vontade de viver todas as possibilidades das quais sei que ainda podem existir neste mundo. Às vezes dou ataque de deprê, até chego dizer que quero “ir embora daqui” e deixar todo esse mundo louco pra traz. Essa semana mesmo, por exemplo, surtei. Na verdade, sei que estes momentos representam só uma forma que tenho de dizer pra mim mesmo (e para os outros!) o quanto quero viver ainda.


Viver sim, porque tem muito que se fazer ainda aqui! Olha quanta contradição, olha essa bagunça! Puta que pariu! E olha que ela ainda tentou abortar, mas o chá que tomou pra isso não funcionou pelo visto, agora o filho cresce nas ruas esperando que a sociedade termine o aborto. E essa sociedade somos nós! Enfim...


É preciso ter uma força de leão pra levantar todos os dias, ainda mais nestes dias. E só se conformar, “dando um jeitinho” e tocar a vida não rola – não dá! É cliché demais: além de sabermos que causa stress, dá infelicidade ou no máximo tédio! O conformismo só deixará essa bomba latente. Mesmo que seja preciso implodir ou explodir tudo de uma vez, é preciso fazer algo! O grito está na garganta entalado. E enquanto se segura para não gritar e ferir “ouvidos castos”, o grito não sai: mas ecoa e endurece a alma! Atitude blasé? Até quando? 
Até enlouquecer? Não precisa, já estamos loucos! Olhe à volta!


Mudar o mundo? Pra quê?! Se tenho onde dormir, o que comer, o que vestir, e o circo a minha disposição num clique de controle remoto ou do pc no facebook?


Ser superficial? Talvez!  Afasta a consciência da culpa. Pra quê sonhar, refletir ou questionar? Se afinal já temos o pão e o circo nosso de cada dia?


E ser profundo? É mais difícil! Pois dói: e como. É estar mexendo numa ferida que não cicatriza. E ela nos atordoa, pois, afinal, ela já faz parte da estrutura, não é mesmo? E então o que fazer? Fingir que ela não existe? Não caríssim@! Não dá. Sinto lhe informar: mas ela vai continuar ali. E quando estiver sozinh@ - você e seus pensamentos – ela volta a lhe dizer oi!

Viver é assim! É também saber assumir a bagagem que nos legaram sem nos perguntarem se a queríamos. Ou não, você tem direito de escolha! Tem liberdade! Será mesmo?


Penso que enquanto deixarmos a ferida escondida, ou a bagagem (como quiser!) guardada no fundo do guarda-roupa, estamos nos alienando e deixando de viver o que é nosso. É por isso que quero viver. Quero tentar dar conta dessa bagagem: cuidar dessa ferida que arde no meu sangue todos os dias. Pois ela me traz dor, confusão e muita instabilidade.


Contudo, ela também me traz a consciência de que estou vivo. Pois, ao afinal das contas, estou sentindo. E se é possível ter percepção ou agir no mundo, é porque também existem sentimentos no pacote.


Boa vida, boas dores, bons momentos e tristes também! O importante é fazer valer a pena não é mesmo?!


                     Cleverson Fleming (29/10/2011 – 04:45)

                

quinta-feira, 20 de outubro de 2011


Fiel é o caralho!

In Cultura on 02/09/2011 at 15:26
Helga Gahyva
Em “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais”, o teórico russo Mikhail Bakhtin alega a impossibilidade da verdadeira compreensão do sistema de imagens rabelaisiano se analisado fora da linguagem do realismo grotesco, correspondente ao sistema de imagens da cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento.
Segundo Bakhtin, ao tom feudal, sério e religioso, próprio à cultura oficial medieval, contrapunham-se manifestações da cultura popular nas quais apenas por meio do riso exprimiam-se certas verdades sobre o mundo. Relegado à esfera extraoficial, o cômico tinha lugar no carnaval e nas demais festas populares. Se as comemorações oficiais buscavam reforçar a ordem, consagrando sua estabilidade, nas festas populares abria-se espaço para o reino utópico da liberdade, da igualdade e da abundância.
Nos espaços públicos – praças, feiras etc. -, as celebrações populares caracterizavam-se por uma lógica do excesso, na qual as imagens do corpo e suas necessidades naturais adquiriam tom superlativo. Trata-se, em síntese, de um princípio de rebaixamento, pilar artístico do realismo grotesco, por meio do qual os elementos considerados sagrados e elevados são transferidos e reinterpretados no plano material e corporal.
Além de hiperbólico, o corpo grotesco é dinâmico – não o corpo acabado, perfeito, individualizado, próprio ao cânone moderno, mas um corpo em constante metamorfose, tal como as velhas grávidas de terracota esculpidas por Kertch. Valorização da fecundidade – a prenhez dilata o corpo que produz novo corpo – e da velhice – o corpo em degeneração que não se esgota, pois se regenera ao produzir nova vida. Ênfase naquilo que o põe em contato direto com o mundo: orifícios, protuberâncias, excrescências. Nas faces, destacam-se bocas e narizes; pouca atenção merecem os olhos – eles individualizam um corpo que é também, e sobretudo, coletivo.
Assim, comer, beber, cagar, foder são representações correntes no sistema de imagens da cultura cômica popular. Traduzem ações nas quais o corpo revela sua essência: ao ultrapassar seus limites ou ter seus limites invadidos, ele revela sua necessária incompletude. E são ditas naqueles termos, ou em equivalentes igualmente grosseiros. No vocabulário cômico do realismo grotesco, os eufemismos caros à oficialidade cedem lugar a palavrões, injúrias e obscenidades de toda ordem.
Rabelais, nota Bakhtin, abusa dos tons vulgares, resgatando, em sua obra, a linguagem da praça pública – do povo, enfim. Mas, se foi na literatura do Renascimento que o realismo grotesco conheceu seu apogeu, foi para brevemente viver seu ocaso. A partir do século XVII, a atitude em relação ao riso sofre transformação radical, demarcando rígida fronteira com aquela época. A racionalidade cartesiana e a estética classicista despontam como expressões ideológicas das monarquias absolutas progressivamente estabilizadas. O riso conhece aí seu processo de degradação. Não mais lhe cabe expressar uma forma universal de concepção do mundo; seu papel, agora, oscila entre o divertimento ligeiro e a mera ridicularização de quem se tornou merecidamente vítima de um escárnio. Na hierarquia dos gêneros, o cômico ocupa modesta posição. Se no realismo grotesco degradação e regeneração são duas faces de uma mesma moeda, o novo cânone descarta a ambiguidade e adere à decência verbal. A obscenidade torna-se patrimônio da vida privada; o inacabamento, imperfeição; e a representação hiperbólica cede lugar àquela que se pretende cópia fiel da realidade.
Apesar de rebaixada, a estética do realismo grotesco permaneceu habitando os subterrâneos da cultura moderna. À sua época, Bakhtin reconhecia seus ecos em certos números circenses e em espetáculos de feira. Hoje, no Brasil, ela irrompe de modo avassalador no funk carioca. Como caso paradigmático dentro deste vasto universo, vejamos como essa estética se manifesta na atitude corporal e nas letras das músicas cantadas por Valeska Popozuda, líder do grupo de funk “Gaiola das Popozudas”, e propalada celebridade de segunda linha.
No que se refere ao primeiro aspecto, a funkeira cultiva a opulência física de uma autêntica mulher fruta. Enquanto nas “vogues” pululam salientes clavículas e ilíacos, vendidos como ideal máximo de beleza, ela leva suas formas hiperbólicas à capa da Playboy, revista ícone do pornô-chic. Valeska é apenas o exemplo, talvez mais sintomático, de um fenômeno relativamente recente: o ingresso no mundo do consumo de fatia considerável das classes populares. À sua ascensão social corresponde a valorização de um ideal de beleza que, distante dos corredores do Fórum de Ipanema, corporifica o belo na abundância curvilínea. Mas Valeska vai além: metamorfoseia seu corpo, ampliando artificialmente as protuberâncias. Seu corpo não é refém de suas formas originais. Ela não queima sutiãs; prefere renovar permanentemente seu estoque a cada circunferência maior que o silicone lhe propicia.
Já no título de seu primeiro sucesso, A porra da buceta é minha, Valeska chuta no joelho. Em uma sociedade na qual “fulano é bom para caralho”, proliferam metáforas para nomear o órgão sexual feminino. A falsa loura as despreza, optando pela palavra que arranha ouvidos castos. Em Tô com o cu pegando fogo, pérola mais recente, gravada em parceria com o não menos rabelaisiano Mr. Catra, ela escolhe outro nome – Raspei a xereca pra você chupar – mas mantém a carga obscena.
E se a porra da buceta é dela, Valeska pode dá-la a quem quiser. A máxima domy body, my choice é levada ao extremo. Em uma sociedade na qual, a despeito de esforços recentes, persiste intensa desigualdade de oportunidades, a melhor saída para uma boa dona de casa cansada de um marido violento e mulherengo pode estar na prostituição, ensina ela em Agora virei puta. Por que seria má ideia cobrar pelo que se costuma oferecer de graça? Por que, em um sistema econômico no qual tudo se transforma em mercadoria, a venda do corpo causa tanta repulsa? As mulheres que habitam as canções de Valeska não precisam se fazer tais perguntas; elas preferem unir prazer e trabalho.
São mulheres que, acima de tudo, adoram sexo e o praticam sem culpa – meu nome é “Valeska” / e o apelido é “Quero dá”. Preferem o prazer de uma relação informal às modorras do matrimônio. Ser a “outra”, então, pode ser uma tremenda vantagem, como ela canta na música que dá título a esse texto: fiel é o caralho / você é empregadinha / lava, passa e cozinha / mas a pica dele e minha! Um amante casado é, na pior das hipóteses, um otário pra bancar. Afinal, mulher burra fica pobre / mas eu vou te dizer / se for inteligente pode até enriquecer, assegura a funkeira em Minha buceta é o poder.
Valeska é espontânea de uma multidão de mulheres que não se identifica com as barangas ajeitadas de Sex and the city. O prazer não se realiza no binômio sapatos novos / relação estável, mas na animalidade do sexo. O homem desejado é, antes de tudo, aquele bom de cama – condição que só se revela na prática. À rotatividade inevitável segue-se a recomendação: a gaiola está na pista / se me olhar beijo também / para não trocar os nomes / eu vou te chamar de Nem. Mas não se trata de mera loteria, pois as personagens dos funks de Valeska conhecem suas preferências. Elas não esperam passivamente que os homens lhes deem orgasmos; mais sábio indicar-lhes o caminho das pedras, como em Surra de piru na cara e Comece a me chupar.
Nas suas letras, louvam-se inclusive aqueles orifícios menos ortodoxos. Trata-se, afinal, de uma artista que propagandeia em seu próprio nome artístico suas virtudes calipígias. O sexo anal, socialmente cercado de tabus, é transformado em diferencial próprio àquelas que exercem e assumem seus desejos. Se elas brincam com a xereca / eu te dou uma chá de cu, gaba-se Valeska, recusando-se a ter um orifício cuja função seja somente a de verter merda. Mas ela vai além, penetrando em reentrâncias ainda mais interditadas: o ânus masculino é também fonte de gozo. O homem bom de cama tampouco despreza oportunidades de prazer, como revela a estrofe: me chama de cachorra / de mamada e de lanchinho / mas na hora do vamos ver / tu vira o cú e pede dedinho.
Se o realismo grotesco, em suas origens, valoriza as diversas funções fisiológicas do corpo, Valeska concentra-se naquelas de caráter sexual. Excrescências e farturas alimentares, por exemplo, estão ausentes de suas músicas. O excesso etílico, por sua vez, comparece em algumas canções, mas sempre subsidiário ao sexo. A embriaguez, afinal, auxilia a mulherada a perder a linha.
Mas, para além da sua atitude corporal e de suas composições, a performance de Valeska carrega o traço de extraoficialidade que caracterizava as festas populares de outrora. Suas músicas só aparecem nos grandes meios audiovisuais em versões adocicadas. Mesmo em um evento como o “Eu amo baile funk”, sediado no Circo Voador, os organizadores preferem que ela vá pro baile de sainha, e não sem calcinha, como apregoa a letra original. De modo semelhante, o valeu, muito obrigado [sic], mas agora virei puta torna-se valeu, muito obrigado [sic], mas virei absoluta. Outros exemplos poderiam ser arrolados, porém o que interessa aqui é perceber que a verve grotesca de Valeska manifesta-se plenamente apenas em um locus especial: o baile funk“de raiz”, colonizado por popozudas que exibem orgulhosas suas saliências corporais e não ruborescem ao som de obscenidades que, ao fim e ao cabo, descrevem aquilo que se faz presente no seio das “melhores famílias”.
Não faltam aqueles que encerram tais manifestações sob a rubrica da mera vulgaridade. Tratar-se-iam de sintomas da falta de educação de umlumpemproletariado refém da cultura de massas. Esta é uma chave interpretativa possível, não há dúvida, mas que me parece pecar pela incapacidade de compreender certos aspectos da sensibilidade popular. Mais ainda, essa perspectiva pressupõe uma verdade acessível apenas àqueles que compartilham um ethos “vitoriano” que precisa ser difundido às massas. Cumpre-nos perguntar, entretanto, em qual medida setores das classes populares em ascensão social desejam ser educados segundo as orientações da decência verbal e sexual, ou se, ao contrário, preferem manter-se fiéis ao paradigma do excesso. A se considerar a música dedicada ao ex-presidente Lula, Valeska não parece ter dúvidas: o funk não é problema, para alguns jovens é a solução / quem sabe algum dia viro ministra da Educação.

Fonte:
Revista Pitacos. Revista de Cultura e Humanidades. Disponível em: